Cumprir a Convenção sobre os Direitos da Criança – Um desígnio e Quatro propostas

Cumprir a Convenção sobre os Direitos da Criança – Um desígnio e Quatro propostas

Ontem levei o meu filho mais novo à Creche de pijama. Comemorou, com as amigas e os amigos, mais um Dia Nacional do Pijama e, em simultâneo, mais um aniversário da adopção pela Assembleia Geral das Nações Unidas da Declaração dos Direitos da Criança (1959) e da Convenção sobre os Direitos da Criança (1989).

A convenção, quase universalmente ratificada, assenta em quatro pilares fundamentais que incluem: a não discriminação e a aplicação dos direitos a todas as crianças; o princípio do seu superior interesse nas decisões que lhes digam respeito; a sua participação e consideração das suas posições e opiniões; e a garantia de sobrevivência, desenvolvimento integral e da promoção da sua qualidade de vida e bem-estar.

Mesmo considerando as enormes melhorias, Mundo fora, nestes quatro pilares desde 1959 ou de 1989, pensemos por um momento nos últimos anos. Este meu filho nasceu em Junho de 2021 e, em menos de 30 meses de vida, viveu parte da pandemia por COVID-19 e um conjunto de outras crises e catástrofes em lugares diversos do Mundo, a continuação de um conjunto de Guerras, incluindo civis, e o início da Guerra desencadeada pela Federação Russa na Ucrânia. Viveu o hype da inteligência artificial (generativa), as primeiras mortes em contexto de guerra por armas autónomas, o início das viagens turísticas espaciais e, mais recentemente, a (a cada dia mais) trágica situação na Faixa de Gaza, os tenebrosos ataques de 7 de Outubro e a escalada assombrosa da Guerra Israel-Hamas, com bombardeamento e invasão pelo exército Israelita da Faixa de Gaza e incursões na Cisjordânia. Pergunto, portanto, estarão, Mundo fora, melhor as crianças nestes quatro pilares desde 2021?

Mesmo com esta vertigem, com esta ambiguidade, com esta incerteza, penso em pessoas que responderiam, taxativamente, sim e noutras que responderiam não. Penso, também, em pessoas que responderiam sim e não, mas não taxativamente. Mais, penso em pessoas que teriam dificuldade em responder, reconhecendo as profundas diferenças entre diferentes lugares no Mundo e Portugal, fugindo a uma generalização estatística que pode suportar a resposta à pergunta, mas desafiar a universalidade dos direitos e ser profundamente injusta para muitas crianças, Mundo fora. Que pode ser muito injusta para muitas crianças, até, em qualquer país, independentemente do seu nível de desenvolvimento. Que pode ser muito injusta para muitas, em Portugal.

Em Portugal, apesar de alguns indicadores terem melhorado nos últimos anos e de termos hoje compromissos políticos significativos, persistem níveis de pobreza e exclusão, na primeira infância e juventude, que condicionam decisivamente o cumprimento da Convenção, os direitos e a possibilidade de desenvolvimento integral, qualidade de vida e bem-estar de muitas crianças e jovens. Que o impossibilitam no presente e que o obstaculizam para o futuro, gerando injustas e continuadas iniquidades e perigando o desenvolvimento futuro do país. Também por isso, cumprir a Convenção deve ser nosso desígnio. Também por isso, humilde mas comprometidamente, deixo quatro propostas para aprofundarmos e sermos mais efectivos nesse caminho:

1. Uma estratégia, ancorada em políticas de promoção da natalidade e sociais, que aponte aos primeiros 1000 dias de vida de um bebé, considerando os 9 meses de gestação e os dois primeiros anos de vida extrauterina. Considerando os impactos negativos no seu desenvolvimento integral[1], incluindo mesmo nas suas estruturas cerebrais e neuronais, da exposição a situações de stresse significativo (particularmente presente em famílias expostas a situação de pobreza, exclusão ou marginalização), devemos desenvolver medidas que permitam eficazmente a redução da exposição a estas condições no período da gravidez e primeiros dois anos de vida do bebé, acompanhadas de suporte emocional e de desenvolvimento de competências parentais, disponíveis para todas as famílias;

2. A revitalização do modelo de intervenção precoce na infância e do conjunto de intervenções educativas, sociais e de saúde que permitam responder, precocemente e de forma contingente, a primeiras necessidades de bebés, crianças e famílias, activando e promovendo competências das e dos cuidadores e comunidade para a identificação e resposta a crianças, nos seus direitos. Revitalização de um modelo, referência internacional na área, fortemente dependente de um compromisso para maior afectação de recursos e para a garantia de condições de continuidade, enquadramento e desenvolvimento sócio-profissional das equipas técnicas e respectivas coordenações;

3. Ao objectivo de generalizarmos a possibilidade de acesso a contextos educativos de bebés e crianças dos 0 aos 3 anos, juntarmos o importante objectivo de garantirmos a qualidade dos ambientes educativos, ainda pouco considerada, contribuindo para o desenvolvimento integral de bebés e crianças. Neste âmbito, creio relevante acompanharmos o importantíssimo trabalho que o laboratório colaborativo ProChild, presidido pela Isabel Soares, recentemente agraciado pela Assembleia da República com o Prémio Direitos Humanos de 2023 (em conjunto com a P.A.J.E.) e promotor do “Pacto para a Infância”[2], tem desenvolvido e apoiarmos a sua disseminação e generalização;

4. Sabendo-se hoje o papel que as educadoras e educadores e as professoras e professores, particularmente nos primeiros ciclos de estudo, têm na possibilidade de prevenir o aprofundamento dos desfasamentos educativos de bebés, crianças e jovens provenientes de contextos mais vulneráveis, investir em programas de formação e desenvolvimento profissional da classe docente, fortemente comprometidos com a redução das desigualdades, com a capacidade de responder às situações de maior vulnerabilidade e com a avaliação de impacto. Neste âmbito, creio também relevante conhecermos o trabalho que o Ambition Institute (UK), que tem como Director Associado o Miguel Herdade, tem realizado e a forma como os seus programas contribuem para a diminuição dos desfasamentos nos resultados educativos e no desenvolvimento da crianças e jovens provenientes de contextos mais vulneráveis.

Quatro propostas assentes na ciência e evidência, que melhorariam e tornariam mais efectivas as políticas públicas. Quatro propostas que sedimentariam o desígnio de cumprirmos a Convenção sobre os Direitos das Crianças e minimizar obstáculos e barreiras que se colocam à equidade e ao desenvolvimento futuro de crianças e jovens expostos a contextos de pobreza, exclusão ou marginalização, com foco intergeracional e de investimento para o desenvolvimento económico e coesão social futura do país.

Na verdade, aqui e ali, no Mundo ao redor, considerar “que a criança deve estar plenamente preparada para uma vida independente na sociedade e deve ser educada de acordo com os ideais proclamados na Carta das Nações Unidas, especialmente com espírito de paz, dignidade, tolerância, liberdade, igualdade e solidariedade”, conforme a Convenção define, depende de contribuirmos para a universalização destes direitos, tornando-os mais equitativos no país e entre países. No presente e para o futuro.

Tiago Pereira

Cumprir a Convenção sobre os Direitos da Criança – Um desígnio e Quatro propostas

in Sábado (Ao redor…); 21.11.2023

https://www.sabado.pt/opiniao/convidados/tiago-pereira/detalhe/cumprir-a-convencao-sobre-os-direitos-da-crianca—um-designio-e-quatro-propostas


[1] https://www.sabado.pt/opiniao/convidados/tiago-pereira/detalhe/1000-dias

[2] https://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=pacto-para-infancia

 

Psicólogo / Membro da Direcção – Psychologist / Board of Directors | Ordem dos Psicólogos Portugueses
FOTO DE CAPA: GERALT 


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